sexta-feira, 8 de outubro de 2010

Memórias de I: Matemática - Parte 2

Comecei a imaginar as rotas de fuga. Passar mal nem pensar. Teria que ficar em casa com a velha Docinho. A mãe dava aula num colégio municipal. Só se eu não fosse para casa. Mas, para onde eu iria?Passei tanto tempo pensando em como iria me livrar da matemática que, quando dei por mim, já estava arrumada e sentada dentro do carro do pai, enquanto a mãe enchia os ouvidos dos meus irmãos com recomendações. Era tarde. A escola me esperava.
Foi a pior volta de carro da minha vida. Tentei acreditar que a professora tinha sofrido um acidente. Nada muito sério. Ela teria escorregado no banheiro, batido com a cabeça na privada, caindo de boca em um...sabonete. Quebraria no máximo duas unhas, dez dedos das mãos, e o nariz...Coisa pouca. O suficiente para ela não poder dar aulas por três anos, porque em três anos eu me formaria: “Se Deus quiser! Se não, eu devo Ter cometido um pecado muito grande!!
Dentro do carro o pai ia cantarolando uma música de um tal “Trio Parada Dura”. Henrique, o mais velho, sentado no banco do carona, ouvia num walkman ligado no último volume um barulho chamado “Ramones”. O terceiro, Joaquim, ia atrás comigo. Passava a viagem roendo um biscoito recheado de chocolate. Roendo não, ruminando. Porque o biscoito durava tanto, dava a impressão que meu irmão o mastigava, engolia e depois regurgitava para roer de novo.
Era assim sempre. A mamãe deixava o caçula, Luís, na creche. O pai nos levava. E lá ia eu, tentando me organizar (sempre fui uma pessoa enrolada). Na verdade aquela quarta-feira foi uma grande exceção. Eu não dava a mínima importância para a bagunça que minha mochila estava, nem para o fato de estar com as meias do avesso.
Tudo o que eu queria era um milagre: o fim da matemática.Dentro da minha cabecinha (juro que era uma cabecinha pequena e bonitinha, apesar de me chamarem de cabeça de paraíba) conseguia enxergar o senhor Presidente...o Papa...o próprio Jesus Cristo, aquela figura que me intrigava, preso à cruz e pendurado na parede da igreja (isso é outra história), movendo os lábios dizendo, em voz solene, arredia e grave (papai dizia que a voz de Deus era como um trovão, e já que na catequese Dona Dulce explicava que Jesus era Deus Menino...):
“É um grande pecado praticar, ensinar, pensar matemática. Está proibido, até mesmo, pronunciar este nome. Aquele que o fizer será julgado por Mim, sob pena do Inferno.” Ah...Como seria bom! Tinha a certeza que todos iriam concordar por dois motivos: todo mundo teme a Deus, e ninguém quer passar as férias eternas no inferno.

>> Continua <<

(1999/2000)

domingo, 3 de outubro de 2010

Memórias de I: Matemática - Parte 1

Hoje eu fiz como faço todas as manhãs: abri as janelas, liguei o som, me alonguei, olhei o sol... Sol?! Mas que Sol? O céu está mais cinzento que fuligem...Faz lembrar quando eu tinha meus treze anos e estava começando o colegial. Naquela época o Rio de Janeiro podia ser confundido com outro Rio, o Grande do Sul, de tão frio que estava. Ao cair da noite um denso nevoeiro cobria boa parte da cidade, de um jeito que, mesmo que o prefeito colocasse o Sol para iluminar o Cristo Redentor, não conseguiríamos ver nem os degraus da escada. De manhã cedo, entre seis e sete horas da manhã, ficava tão escuro quanto a noite. Era frio, frio mesmo.
O despertador havia tocado por uns dez minutos naquela manhã escura de Quarta-feira. E eu não havia se quer me mexido na cama. A mãe veio com aquele jeitão dela: cabelo desgrenhado, cara amassada, hálito de urubu, robe rosa acolchoado e uma vassoura de piassava nas mãos. Parecia que ia varrer a gente da cama com seus gritos estridentes. Digo a gente porque não era somente eu quem não acordava com o despertador. Meus irmãos, até o meu pai, não acordavam também.
Depois do “espetáculo já cedo”, era assim que meu pai chamava a vassoura da mãe, tomávamos o café da manhã. O pão francês de Seu Branco, que a cada dia aumentava de preço e diminuía, na mesma proporção, de tamanho. O café com leite. O choro chato do caçula com fome, enquanto o terceiro de nós oferecia a mamadeira.
Naquela casa grande, de um pavimento e toda pintada na cor gelo, morávamos: meus três irmãos, meus pais, a avó Docinho e eu. Pois é, o nome da minha avó era Docinho, mas de doce ela não tinha nada. Começava o dia de cara amarrada e jeito de general, distribuindo as tarefas domésticas entre nós. Meu irmão mais velho vivia insistindo para que a mãe contratasse uma empregada. A mãe respondia com uma pergunta: “Pra que se vocês dão conta?”.
Voltando a minha história, era uma manhã escura de Quarta-feira. No primeiro tempo aula de matemática, com a professora mais discreta do mundo. Seu vestido branco com enormes peixes coloridos e a sandália verde-lima eram a sensação do colégio. Mas o seu jeito de dar aula era uma tortura. Creio que não gosto de matemática por conta dela. Imagine a minha vontade de assistir aquela aula. Precisava dar um jeito de fugir.
>> Continua <<
(1999/2000)

Sobre Escrever

Nada é mais profundo em mim do que a minha escrita. Ela nasce no fundo de uma alma que não se conhece, mas não se estranha. E flui, rumo ao grande oceano da vida, como toda pequena nascente termina no mar. As ondas e as chuvas trazem de volta pequenas gotas de tudo o que fui e serei um dia. Mas é o fluir que me torna viva. Das palavras que recito, escorre a verdade do que sinto. Escondo-me, dizem, nas frases que redijo. Porém a realidade é que me entrego a cada caracter que digito. Nada surte tanto efeito para a libertação do meu espírito quanto o desabafo de minhas dores e amores no branco papel ofício. Cabe em meu corpo zilhões de cicatrizes invisíveis e visíveis, que me revelam a história de uma existência não pacífica. Pois nada me causa mais asco do que a falta de paixão pela vida. Preciso que meus gritos ecoem longe dos meus próprios ouvidos. E que as batidas do meu coração retumbem além de mim. Pois nada eu seria se não houvesse outros ouvidos, outros corações e outras escritas. Cada um de nós tem sua forma de entregar. Um vínculo único que nem todos podem alcançar. Algo que é mais seu do que meu, mais meu do que seu, menos nosso. E ainda sim é nosso. O que seria de minha escrita sem sua aparente apatia, e de sua música sem o meu aparente entusiasmo. O que nos vaza pelos poros e nos segura nesse chão é um laço único. Mesmo que nunca leias os meus escritos e ainda que raramente eu escute as suas melodias, enxergamos além.A necessidade de escrever é como comer, alimenta-me. Nutre meu coração e fortalece a minha mente, uma pequena geradora de idéias que se acasalam e se proliferam alheias a minha vontdade.
Amo cada personagem que vive dentro de mim.